sábado, 25 de dezembro de 2010

Considerações sobre a Autoria do Quarto Evangelho (3/3)

Considerações sobre a Autoria do Quarto Evangelho (3/3)

 Evidências Internas
O próprio Evangelho também fornece uma excelente fonte de informações para a questão da autoria.  Westcott é normalmente reconhecido por estabelecer um modo de pesquisa sobre as evidências internas do Quarto Evangelho, de modo a ser seguido com freqüência em outras obras teológicas. Por isso, não faremos diferente em nossa análise. Segundo Westcott, o autor do Evangelho era um Judeu, da Palestina, uma testemunha ocular, um apóstolo e possivelmente João filho de Zebedeu.

A. O Autor era Judeu da Palestina

A tradição teológica normalmente não tem qualquer problema com esse fato. Isso acontece certamente em função das clarividentes evidências encontradas no próprio evangelho. F.F. Bruce não tem qualquer dúvida, e sobre o assunto afirma que “o autor sem dúvida era um judeu; [ele] mostra-se totalmente enfronhado dos costumes e usos judaicos[1]”. Em outra obra acrescenta: “Que o evangelista era um judeu parece claro[2]”. Sobre isso, Westcott afirma:
Um exame honesto das evidências parece não deixar espaço para uma dúvida razoável nesse ponto. A narrativa como um todo demonstra que o autor era Judeu. Ele é familiar com as opiniões judaicas e costumes, sua composição é impregnada com características judaicas além de ser impactado pelo espírito da dispersão judaica[3].
Carlos Osvaldo amplia:
Além disso, exibe bom conhecimento de costumes judaicos como rituais de purificação (2.6), cerimônias de libação e iluminação durante a Festa dos Tabernáculos (7.37 e 8.12), e contaminação devida à Páscoa (19.31ss.). Conhece também teologia judaica, como a legislação sobre o Sábado (6.10; 9.14ss.) e o conceito da transmissão hereditária da culpa (9.2)[4].
Poder-se-ia citar muitos outros teólogos defendendo as mesmas opiniões, e parece que tal afirmação não parece impor qualquer resistência ao conteúdo do evangelho. Entretanto, é importante considerar as evidências que levaram esses teólogos a considerarem como fato essa premissa.
Em primeiro lugar, é preciso ser dito que o modo de pensar e expressar um pensamento tão similar ao modo de pensar e expressar o pensamento de um judeu, que não pode-se ignorar que tal autor seja de fato um judeu. Inclusive, alguns entendem que o modo de escrever do evangelista exige que o evangelho tenha sido primeiramente escrito em aramaico[5]. Entretanto, isso já parece muito improvável, simplesmente por não se encontrar nenhuma pista manuscrita dessa possibilidade. Entretanto, isso certamente reforça a idéia de um autor Judeu, pensando em Aramaico e escrevendo em grego. F.F. Bruce, sobre isso, diz:
Estudiosos de nomeada tem mantido a tese de que o Evangelho Joanino em grego, como o temos, representa versão de um primitivo original em aramaico. Mui vasta é a erudição a assistir a esse postulado; contudo não se pode dar como comprovada (…) O estilo do Evangelho como um todo, entretanto, bem poderá ser o de alguém dotado de bom conhecimento do grego, cuja língua materna, contudo, seja o aramaico[6].
Westcott afirma que “o vocabulário, as estruturas da sentença, a simetria e os simbolismos numéricos de composição, as expressões e a organização de pensamento são essencialmente Hebreus[7]”. Todas essas informações parecem testemunha um autor Judeu. Note, também, que ele é familiarizado opiniões e julgamentos sobre a pessoa do Messias que parecem refletir o modo de pensar de um judeu do primeiro século:
Então, lhe perguntaram: Quem és, pois? És tu Elias? Ele disse: Não sou. És tu o profeta? Respondeu: Não- Jo.1.21
Eu sei, respondeu a mulher, que há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas – Jo.4.25
Vendo, pois, os homens o sinal que Jesus fizera, disseram: Este é, verdadeiramente, o profeta que devia vir ao mundo – Jo.6.14
Então, os que dentre o povo tinham ouvido estas palavras diziam: Este é verdadeiramenteo profeta – Jo.7.40
Replicou-lhe, pois, a multidão: Nós temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre, e como dizes tu ser necessário que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem? – Jo.12.34
É interessante que o Evangelho foi escrito para responder a pergunta de 1.21, baseado no testemunho da vida do próprio Cristo. Por isso, era importante que esse autor refletisse em sua obra expressões do pensamento comum em sua época, entre seus patrícios, sobre quem era Ele.
Segundo, esse autor também parece familiarizado com a religião judaica, o que facilita sua comunicação com o público judaico. O conceito do sábado judaico é um bom exemplo do conhecimento do autor. As várias indicações de atividades messiânicas em sábados parecem ter lugar especial nesse evangelho, (5.9). Em outras ocasiões ele simplesmente acrescenta notas explicativas sobre o assunto, como: “E os judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado” (5.16); “Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (5.18; cf. 5.9-10; 7.22-23; 9.14; 19.31).
Outro detalhe que parece demonstrar a familiaridade do autor com a religião judaica são algumas declarações específicas do autor em relação à vida religiosa do judeu, como por exemplo, a exigência da circuncisão (Jo.7.22), a questão da contaminação religiosa (18.28), detalhes do ritual de purificação religiosa (2.6); a visão do fariseu sobre os judeus (7.49), o reconhecimento da pessoa que exercia a função de Sacerdote segundo o período que escrevia (11.49, 51, 18.13) a questão da transmissão do pecado (9.2), sem contar o conhecimento do autor sobre as festas judaicas. Westcott defende que o relato da Festa dos Tabernáculos oferece um excelente registro desse fato:
As águas de Siloé derramando sobre o altar do holocausto, e as lâmpadas no pátio das mulheres, explicariam a imagem da “água viva” (7.38) e da “Luz do Mundo” (8,12). E aqui mais uma vez, apenas um judeu que conhecesse o festival seria suscetível de descrever “o último dia da festa”, como o “grande dia” (7,37)[8].
Em questões menos importantes o autor demonstra claramente o modo de se pensar de um judeu. Observe que em algumas ocasiões ele transparecer preconceitos típicos de judeus de sua época, como por exemplo a rejeição que eles tinham com os Samaritanos (Jo.4.9) ou sobre a visão popular que se tinha sobre a mulher (4.27). Em outros lugares, parece familiarizado com boas práticas dos judeus, como o apresso dos judeus pelo ensino (Jo.7.15), o cuidado com os mortos (19.40).
Terceiro, o autor também exibe um conhecimento preciso das condições geográficas e sociais da Palestina, mesmo em menor suas referências incidentais. Carlos defende que João
“…é conhecedor da geografia da Palestina e até pequenos detalhes da arquitetura de Jerusalém. Exemplos específicos são a menção das duas Betânias (1.28; 12.1), de um poço nas cercanias do Monte Gerizim (4.21), dos detalhes da planta do Tanque de Betesda (5.1-2) e da existência do pavimento ao redor do Pretório, inclusive com referência ao nome aramaico de Gábata (19.13)[9].
Além disso, esse Discípulo parece ter uma casa na própria Jerusalém (19.27), o que facilitaria um pescador como João ter conhecimento tão acurado a respeito da região da Palestina em seus dias. E, pensando em todas essas considerações é que podemos tomar as palavras de Hale como verdadeiras:
É inconcebível que um gentio que viveu a alguma distância da localidade onde os eventos deste Evangelho ocorreram pudesse ter conhecido os vários movimentos e relacionamentos políticos e religiosos no país naquela época. O escritor fala de lugares e acontecimentos como se estivesse inteiramente familiarizado com eles[10].
Em último lugar, é fundamental que se dê crédito aqui a outro aspecto que tem levado comentaristas a considerar o autor desse livro como um judeu da palestina, que é o advento dos documentos de Qumrã. Morris, sobre isso, fala:
Essa visão [de um autor judeu da palestina] recebeu sólido suporte nos anos mais recentes em função do descobrimento dos Escritos do Mar Morto. Esses escritos tem demonstrado, pelos muitos paralelos com o Evangelho, seja em idéia ou expressão, que o Quarto Evangelho é essencialmente um documento Palestiniano[11].
Colin Kruse também atesta:
A descoberta dos Escritos do Mar Morto inicialmente em 1947 proveram documentação de primeira-mão de uma comunidade ortodoxa judaica que habitava a região hoje conhecida como Qumrã, e reflete o período de Jesus. Esses documentos usam linguagem similar a encontrada no Quarto Evangelho, em especial, a língua dualística (vida/morte, luz/trevas etc), que até então tinha sido considerada como proveniente de fontes helenísticas do segundo século[12].
Ainda sobre a similaridade de João e Qumrã, F.F. Bruce afirma:
Algumas expressões joaninas características, como “a luz da vida”, “filhos da luz”, “realizando a verdade”, “as obras de Deus”, são paralelas aos Escritos de Qumrã. Ambos, João e o homem de Qumrã, olham para o Universo em termo de claro contrastando luz e trevas, bem e mal, verdade e falsidade[13]
Os documentos de Qumrã certamente tem grande papel da defesa da visão ortodoxa da autoria e do conteúdo do evangelho (assunto a ser tratado com mais atenção mais à frente), visto que, antes da descoberta desses documentos acreditava-se que a similaridade da visão dualística de João estava relacionada com a literatura helênica, especialmente a gnóstica, do segundo século. Observe que as investidas mais ferrenhas dos adeptos da visão crítica à autoria joanina, usaram durante muitos anos esse critério para descartar a autoria joanina, em função de ser uma obra tardia, o que também atestaria a visão de que a Cristologia muito alta do documento era fruto de cristãos do segundo século. Também era esse o critério usado para destacar o conteúdo do evangelho como essencialmente genuíno, em função da suposta influência gnóstica na transmissão da verdade a respeito do Jesus Histórico (aquele acima do mito cristão). Entretanto, todas essas investidas são remedidas pela similaridade com os Escritos de Qumrã.
Ou seja, somados todos esses fatos, parece seguro inferir a partir do gênero literário do evangelho que o autor desse evangelho é na verdade, um Judeu da Palestina do período de Jesus.

B. O Autor era uma Testemunha ocular

Em primeiro lugar, o autor alega ter sido testemunha ocular dos eventos do evangelho: (1.14; 19.35; 21.24-25)
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai (1.14)
Aquele que isto viu testificou, sendo verdadeiro o seu testemunho; e ele sabe que diz a verdade, para que também vós creiais (19.35)
Este é o discípulo que dá testemunho a respeito destas coisas e que as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro. Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos (21.24-25)
Segundo, existem evidências no texto do Quarto Evangelho que parecem suportar essas declarações pessoais. Por exemplo, observe o modo como o autor do Quarto Evangelho se reporta a pessoas (6.5-7)[14]:
Estes, pois, dirigiram-se a Filipe, que era de Betsaida da Galiléia, e rogaram-lhe, dizendo: Senhor, queríamos ver a Jesus. Filipe foi dizê-lo a André, e André e Filipe o comunicaram a Jesus (12.21-22)
Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo? (14.22)
Responderam-lhe: A Jesus, o Nazareno. Então, Jesus lhes disse: Sou eu. Ora, Judas, o traidor, estava também com eles (18.5)
As designações pessoais que o autor apresenta a respeito das pessoas envolvidas nos eventos que narra sugerem que ele estava presente. Não haveria qualquer necessidade para um autor que não estivesse nos eventos narrar alguns detalhes que não são significativos para o conteúdo da história. Note o primeiro caso em que o autor narra um “telefone sem fio” entre os apóstolos que não parece significativo ao evento narrado, e nem ao menos faria qualquer diferença em seu conteúdo. Se essa história fosse uma questão de tradição histórica da igreja, detalhes como nomes não seriam significativos nessa narrativa.
Por outro lado, algumas designações sobre as pessoas que surgem em sua narrativa não necessárias, como por exemplo, as distinções entre os Judas que seguiam a Cristo. Esse cuidado do autor em definir pessoas por nomes e designações sugere que ele tem apreço por detalhes específicos, o que sugere que ele estava presente a narrar os fatos. Sem contar, que ele tem o pudor de distinguir pessoas com mesmo nome para que o leitor não fique confuso sobre quem ele está a mencionar nos eventos.
Além disso, o autor do evangelho também se refere ao tempo em que os eventos ocorrem de modo a sugerir que estava presente nos acontecimentos:
Estando próxima a Páscoa dos judeus, subiu Jesus para Jerusalém (2.13; cf. 6.4)
Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome (2.23)
Passadas estas coisas, havia uma festa dos judeus, e Jesus subiu para Jerusalém (5.1)
Ora, a festa dos judeus, chamada de Festa dos Tabernáculos, estava próxima (7.2)
Celebrava-se em Jerusalém a Festa da Dedicação. Era inverno (10.22)
Como já vimos o apreço do autor em nominar as festas judaicas certamente sugere que ele era conhecedor da religiosidade judaica no primeiro século. Contudo, o modo como ele associa eventos da sua narrativa principal, com ocasiões específicas sugerem que tal autor não apenas sabia sobre a religião, mas estava presente nessas ocasiões. Considere o valor da designação da ocasião climática da festa da Dedicação (10.22). Com ela podemos situar a exata ocasião em que os eventos narrados acontecem, informação importante para o autor que esteve presente na ocasião. Para um autor tardio não presente na ocasião, não faz qualquer diferença se o fato aconteceu no inverno ou no verão, apenas o fato em si. Esse preciosismo do autor sugere fortemente que ele estava pessoalmente presente.
O autor desse evangelho também demonstra outros detalhes em suas narrativas que, mais uma vez, sugerem que estava presente. O modo como ele demonstra detalhes numéricos sugere isso, observe:
No dia seguinte, estava João outra vez na companhia de dois dos seus discípulos (1.35)
Estavam ali seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações, e cada uma levava duas ou três metretas (2.6)
Está aí um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois peixinhos; mas isto que é para tanta gente? (6.2)
Tendo navegado uns vinte e cinco a trinta estádios, eis que viram Jesus andando por sobre o mar, aproximando-se do barco; e ficaram possuídos de temor (6.19; cf. 21.8)
Tendo, pois, os soldados crucificado a Jesus, tomaram as suas vestes, e fizeram quatro partes, para cada soldado uma parte; e também a túnica. A túnica, porém, tecida toda de alto a baixo, não tinha costura (19.23)
Simão Pedro subiu e puxou a rede para terra, cheia de cento e cinqüenta e três grandes peixes e, sendo tantos, não se rompeu a rede (21.11)
Todas essas declarações são importantes para a narrativa dos fatos, mas as especificidade delas sugere uma testemunha ocular, não um narrador. Que diferença faria para a narrativa se ao invés de seis talhas de pedra, fossem 7? Ou se a distância da navegação era de vinte e cinco ou vinte estádios? O fato não era que haviam se distanciado o suficiente para não esperarem que alguém pudesse chegar a pé até onde estavam?A quantidade exata de peixes favorece um autor presente, que muito provavelmente participou da contagem, e por isso os três excedentes dos numero redondo foi anunciado. Um autor não presente poderia dizer com verdade cerca de 150, mas a especificidade do autor sugere que estava lá na ocasião.
Fato similar acontece com o modo como o autor fala de algumas localidades em seu evangelho, observe:
Estas coisas se passaram em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando (1.28)
Ora, João estava também batizando em Enom, perto de Salim, porque havia ali muitas águas, e para lá concorria o povo e era batizado(3.23; cf. 4.46; 10.54-56)
Mais tarde, Jesus o encontrou no templo e lhe disse: Olha que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior. (5.14; cf. 11.30)
Novamente, se retirou para além do Jordão, para o lugar onde João batizava no princípio; e ali permaneceu (10.40)
As referências a esses locais, no ambiente de sua narrativa sugere fortemente que o autor estava presente nessas ocasiões, e o modo como ele se refere aos locais (onde João batizava) também sugerem que eram locais pessoalmente conhecidos pelo autor. Todos esses detalhes historicamente e geograficamente adequados sugerem que o autor fala não como conhecedor da história ou da geografia do local (como se existissem livros na ocasião a serem estudados sobre o assunto), mas fala como presente nesses lugares.
Sendo assim, é seguro inferir que o autor desse evangelho era uma testemunha ocular.

C. O Autor era um Apóstolo

Westcott também afirma que o autor do Quarto Evangelho tinha um relacionamento muito próximo com o Senhor, observe:
Ele era ciente das emoções de Jesus (11.33; 13.21). Ele estava em uma posição que o permitia estar bem informado a respeito das ações Dele (2.24ss; 4.1; 5.6; 6.15; 7.1; 16.19). Não apenas isso, ele fala como alguém cuja mente o Senhor estava acessível. Antes de alimentar os cinco mil ele escreve: “Mas ele (Jesus) dizia isto para experimentá-lo; porque ele bem sabia o que estava para fazer” (6.6). Jesus sabia o que os discípulos murmuravam (6.61); Ele sabia desde o princípio quais eram os que não criam e quem o havia de trair (6.64); Ele sabia que era chegada a sua ora (13.1, 3) e quem o haveria de trair (13.2). Jesus sabia todas as coisas que sobre ele haviam de vir sobre Ele (18.4). Ele sabia que todas as coisas haviam sido cumpridas (19.28)[15].
Essas declarações sugerem que o autor desse evangelho fosse alguém do círculo de pessoas mais próximas do Senhor, ou seja, os apóstolos. É importante lembrar que o autor desse evangelho trata com propriedade as pessoas em seu Evangelho, anuncia que o Senhor tem doze discípulos (6.67, 70, 71; 20.24), mas nunca os nomeia por completo. Não há uma lista dos discípulos de Cristo no Quarto Evangelho. É digno de nota também que o autor se refere como “o discípulo amado” (13.23; 19.25; 20.2-9; 21.7; 21.20). Sobre o assunto, D.A. Carson diz:
O discípulo amado é mencionado a primeira vez na última ceia, onde está reclinado próximo a Jesus e faz a medição da pergunta de Pedro ao Mestre (13.23). Ele também está perto da cruz, onde recebe a especial comissão de cuida da mãe de Jesus (19.26, 27), e na tumba vazia, quando foi mais rápido do que Pedro, mas menos ousado, para chegar a entrar nela (20.2-9). No epílogo do quarto evangelho (cap.21) ele aparece como aquele que “escreveu estas coisas”; se “escreveu” significa escrever pessoalmente (…) e “estas coisas” referem-se ao livro inteiro, (…), portanto, o discípulo amado é o evangelista[16].
Se o discípulo amado é o evangelista, temos que considerá-lo como um dos doze apóstolos, pois esse discípulo estava com o Senhor durante a Última Ceia, e os evangelhos sinóticos são unânimes em retratar esse evento, como um evento entre o Senhor e os discípulos (Mt.26.20; Mc.14.17; Lc.22.14). Outro detalhe digno de atenção é que o discípulo amado é colocado em algumas ocasiões em contraste com Pedro (13.23, 24; 20.2-9; 21.20), o que indica que o discípulo amado não é Pedro. Na cena da última ceia, o discípulo amado é distinguido de todos os outros discípulos mencionados na ocasião. Por ter sido um dos sete (21.7) que saiu a pescar e não é Pedro, Tomé ou Natanael, (21.2), só pode ser um dos filhos de Zebedeu ou um dos dois discípulos não mencionados no verso. Westcott novamente nos auxilia com essa questão:
Agora, se voltamos a atenção à narrativa Sinótica, vamos encontrar três discípulos especialmente próximos de Jesus, Pedro e os filhos de Zededeu, Tiago e João. Aqui há um forte pressuposto que o Evangelista era um desses. Pedro está fora de cogitação. Dos dois filhos de Zededeu, Tiago foi martirizado muito cedo (At.12.2), e portanto, não pode ter sido o autor do evangelho. Só resta, portanto, João; e ele satisfaz completamente as condições necessárias a serem satisfeitas pelo escritor; de que ele devia estar em estreita ligação com Pedro, e que também era uma pessoa admitida na intimidade peculiar com o Senhor[17].
D.A. Carson completa:
O motivo tradicional parece o mais plausível: o discípulo amado não é outro se não João, e ele deliberadamente evita citar seu próprio nome. Isso se torna mais provável quando nos lembramos que o discípulo amado está constantemente na companhia de Pedro, do mesmo modo que nos sinóticos (Mc.5.37; 9.2; 14.33) como em Atos (3.1-4.23; 8.15-25) sem mencionar Paulo (Gl.2.9), unem Pedro e João pela amizade e experiências compartilhadas. Observou-se que nesse evangelho a maioria dos personagens importantes são designados por nomes ou expressões completos: Simão Pedro, Tomé Dídimo, Judas filho de Simão Iscariotes, Caifás, o sumo sacerdote daquele ano. Estranhamente, contudo, João Batista é simplesmente chamado de João, mesmo quando é citado pela primeira vez (1.6; Mc.1.4). A explicação mais simples é que João, filho de Zebedeu, não julgou necessáiro distinguir o outro João de si mesmo[18].
Na mesma linha de argumentação, Hale acrescenta:
Certamente qualquer escritor cristão do primeiro ou segundo século saberia acerca dos dois homens bem conhecidos, com o mesmo nome, que tinham estreita relação com Jesus. Chamar o Batista de João e não dar o nome do filho de Zebedeu só faz sentido se o próprio autor é esse outro João[19].
Tendo considerado todas essas opiniões, podemos concordar com David Brown, quando diz:
“O autor do Quarto Evangelho era o mais novo dos dois filhos de Zebedeu, um pescador no mar da Galiléia, que residia em Betsaida, onde nasceu Pedro e André, seu irmão, e Felipe também. Sua mãe era Salomé, que, embora não sem suas imperfeições (Mt.20 :20-28), foi uma dos entes queridos e mulheres honrados que acompanharam o Senhor em um dos circuitos de sua pregação através da Galiléia, ministrando a Sua corporais quer, que seguiram Ele para a cruz, e compraram especiarias aromáticas para ungir-lo depois de seu enterro, mas, trazendo-os para o túmulo, na manhã do primeiro dia da semana, encontrou os seus serviços amoroso gloriosamente substituída por Sua ressurreição ere chegaram. Seu pai, Zebedeu, parece ter vivido em boas condições,  a ponto de possuir uma embarcação própria e de ter contratado funcionários (Mc.1.20). Nosso Evangelista, cuja ocupação foi a de um pescador com seu pai, foi sem dúvida um discípulo do Batista, e um dos dois que tiveram a primeira entrevista com Jesus. Ele foi chamado quando acoplado à sua ocupação secular (Mt4.21; Mt.4.22) e, novamente, em uma ocasião memorável (Lc.5.1-11) e, finalmente, escolhido como um dos Doze Apóstolos (Mt10.2). A mais alta honraria concedida a este discípulo era seu ser admitido em intimidade com o  Senhor na mesa, como “o discípulo quem Jesus amava” (Jo.13: 23; 20.2; 2. 7,20.24), e quando se comprometeu a cuidar da mãe do redentor por ocasião de sua morte (Jo.19.26-27).
Todas essas declarações parecem suficientes para que se assuma a tradição eclesiástica de que João, o apóstolo, é o autor do Quarto Evangelho. As evidências internas contribuem para que o testemunho histórico dos Pais da Igreja sobre a autoria joanina do evangelho, seja aceito como fato, muito embora existam ainda muitas outras questões a serem observadas.
Um detalhe que merece ser avaliado é a relação entre a similaridade de pensamento do autor desse evangelho e a filosofia helênica conhecido nos primeiros séculos do cristianismo, pois não são poucos os comentaristas que entendem que isso é uma evidência de que o autor não poderia ser um judeu. Essa questão, entretanto, será avaliada no tópico sobre a Teologia do Autor.

[1] F.F. Bruce, Merece Confiança o Novo Testamento. Pp.64.
[2] F.F. Bruce, Gospel According Jonh. pp.i.
[3] B.F. Westcott, The Gospel according St. John. Pp. v-vi.
[4] Carlos Osvaldo Pinto, Teologia Bíblica do Novo Testamento. ­Material não publicado.
[5] C.F. Burney, The Aramaic Origin of the Fourth Gospel (Oxford, 1922); J.A. Montgomery, Te Origin of the Gospel of St. John (Philadelfia, 1923); G.R. Drive, In the original language of the Fourth Gospel (Jewish Guardian). C.C. Torrey, Our Translated Gospel. (London, n.d.).
[6] F.F. Bruce, Merece Confiança o Novo Testamento. pp.70.
[7] B.F. Westcott, The Gospel according St. John. Pp. vi-vii.
[8] B.F. Westcott, Opt. Cit. pp. vi.
[9] Carlos Osvaldo Pinto, Teologia Bíblica do Novo Testamento. ­Material não publicado.
[10] Broadus Hale, Introdução ao Novo Testamento, pp.140
[11] Leon Morris, The Gospel according to John. Pp. 9
[12] Colin C. Kruse, The Gospel according to John: An introduction and commentary. Pp.33.
[13] F.F. Bruce, The Gospel of John. Pp.2-3
[14] Veja a discussão detalhada desses fatos em, B.F. Westcott, Opt. Cit. pp. xviii-xxi
[15] B.F. Westcott, Opt. Cit. pp. xxi
[16] D.A. Carson, O Comentários de João. Pp.72
[17] B.F. Westcott, Opt. Cit. pp. xxi
[18] D.A. Carson, O Opt. Cit. pp.73
[19] Broadus Hale, Introdução ao Novo Testamento, pp.141

Fonte: teologando

Origem e Destino do Quarto Evangelho

Origem e Destino do Quarto Evangelho

 A questão da origem do evangelho não é uma questão definida pela história da teologia cristã. A mais antiga evidência que temos sobre o assunto provém de Irineu:
Mais tarde, João, o discípulo do Senhor, que repousava sobre o peito, também escreveu um evangelho, enquanto ele residia em Éfeso, na Ásia[1]
Muito embora tal tradição também seja mantida por Eusébio[2], a teologia do século XIX parece ter colocado obstáculos para a aceitação dessa premissa. A rejeição de que João teria escrito de Éfeso é fundamentada em algumas observações sobre a origem conceitual do evangelho. Ou seja, em conformidade com as similaridades a que se associa o evangelho, demonstra-se a localidade de onde João provavelmente tenha escrito o evangelho.
Rudolf Bultmann, por exemplo, fala que o evangelho tem basicamente três fontes principais: a fonte dos sinais, uma dos discursos e outra da paixão. Para ele, a fonte dos discursos, a principal porção do evangelho, tem influências semitas e gnósticas ao mesmo tempo. Entretanto, quando fala da origem geral do evangelho, Bultmann manifesta certa incerteza, observe:
O lugar onde foram redigidos [o evangelho e as epístolas] são desconhecidos (…) Em todo caso, a atmosfera na qual ele surgiu (como também as epístolas) é a do cristianismo oriental. Sem dúvida, o Evangelho em seu todo não foi escrito originalmente em uma língua semítica (aramaico ou siríaco) e depois traduzido para o grego, e sim, foi redigido em grego[3].
É interessante o modo como Bultmann trata do assunto da origem, pois por um lado ela é desconhecida, por outro, é certamente proveniente do cristianismo oriental. Essa incerteza resoluta de Bultmann se deve em primeiro lugar por sua rejeição à opinião de Irineu e a aceitação da similaridade do quarto evangelho com obras gnósticas. Isso o obrigou a assimilar uma origem mista para o evangelho, o associando com a linguagem semita dominada pela influência do dualismo gnóstico. Observe:
Quanto a questão  se a fonte dos ditos e discursos de Jesus (…) é traduzida do semítico ou concebida em grego, é possível dizer que em todo caso, seu estilo é o do discurso semita, ou melhor, da poesia semita como ela é conhecida das Odes de Salomão e de outros textos gnósticos[4].
Segundo a visão de Bultmann, o quarto evangelho provém de um segmento do cristianismo oriental em função de uma clara ligação com o aramaico ou o sírio, que ele até considera como possível fonte para o evangelho. Entretanto, o evangelho é tão parecido com os escritos gnósticos, que ele trata de algumas conexões gnósticas para o evangelho, além de considerar que tal escrito teria sido concebido pelas lentes do mito gnóstico do redentor. Para resolver esse dilema judaico-gnóstico, Bultmann conclui:
Se o autor provém do judaísmo, como talvez o comprovem as freqüentes expressões do rabinismo, em todos os casos, não de um judaísmo ortodoxo, me sim um judaísmo de caráter gnóstico. Especialmente seus recursos redacionais, com os quais constrói os debates, o uso de conceitos e afirmações ambíguas para provocar mal-entendidos, são indicativos do fato de que ele vive no círculo do pensamento gnóstico-dualista[5].
A visão mista de Bultmann não foi amplamente aceita, muito embora discutida e avaliada. Leonard Gopelt (1911-1973) ao analisar a linguagem do documento, demonstrou três características essenciais do evangelho: as antíteses dualistas, os ditos “Eu Sou” e a caracterização de Jesus como Logos. Segundo Gopelt, essas designações são fundamentais para se abordar o que considerou um problema histórico-religioso-filológico e teológico: a questão das fontes do evangelho.
Para Gopelt, o dualismo antitético de João, ao contrário do que supôs Bultmann, não provinha da similaridade com os documentos gnósticos do segundo século, mas com os textos de Qumrã, observe:
Em texto essênios, p. ex., depara-se por diversas vezes (p. ex. 1Qs 3,24s) com a formulação: “filhos da luz” (Jo.12.36; 1Ts.5.5; Ef.5.8), formulação essa não constatada na época pré-neotestamentária. E, a exemplo dos textos joaninos, também a literatura essênia opõe ao filhos da luz homens que permanecem nas trevas. Daí se deduz muitas vezes, em nossos dias, que a terminologia de João tivesse suas raízes no movimento batista judeu da Palestina[6].
É muito interessante que Gopelt considera a possibilidade de que o evangelho tivesse sofrido influência gnóstica, mas conclui que João não adotou uma linguagem gnóstica já formada, nem reformulou modelos gnósticos. Mas, ele também admite que João teria combatido a visão distorcida do gnosticismo, e que isso favoreceu a introdução de terminologias similares, especialmente na primeira epístola[7].
De modo interessante, mesmo a visão mais amena de Gopelt não tem sido a visão mais aceita para descrever a origem do evangelho. Kümmel, por mais estranho que possa parecer, parece não estar em acordo, nem com Bultmannn, nem com Gopelt, observe:
Contra as numerosas teorias levantadas, de que o  autor tenha adotado uma ou mais fontes escritas, não existe apenas o argumento de que a uniformidade lingüística de todo o evangelho dificilmente permite a constatação de eventuais fontes. Contradi-las sobretudo o fato de que não foram apresentados argumentos realmente convincentes sobre a natureza literariamente coerente das tradições utilizadas pelo evangelista[8].
Em outras palavras, Kümmel parece não ter encontrado razões para aceitar a idéia das muitas fontes para o evangelho, pois como podemos perceber até a opinião de Bultmann parece confusa, quanto mais os desdobramentos dela. A opinião de Gopelt, embora mais acertada que a de Bultmann, também parece exigir uma ligação muito forte de João com a seita essênia.
O fato é que todas as opiniões mencionadas partem de um pressuposto fundamental: tal evangelho não pode ter sido escrito por uma testemunha ocular, o que já temos demonstrado ser um fato. Ora, se uma testemunha ocular dos fatos passa a escrever sobre o que viu não tem necessidade de consultar outras obras para contar sua história: Ele simplesmente a conta como percebeu. Ou seja, a linguagem do evangelho fala mais sobre a pessoa do autor do que suas influências, como já temos demonstrado. A questão da linguagem de João provavelmente fala mais a respeito das pessoas a quem destina seu evangelho do que as fontes a que consultou.
Se a intenção de João, um judeu, fosse alcançar judeus na Palestina, ele simplesmente escreveria em aramaico, língua materna de ambos. Entretanto, não foi isso que João fez, ele escreveu em grego, como já tem sido claramente demonstrado pela pesquisa sobre o evangelho. Outro detalhe interessante é que ele tem o costume de usar expressões hebraicas e traduzi-las para o grego, como uma forma de explicação para pessoas que não poderiam entender o hebraico. Fato similar acontece com as constantes designações de localidades na Palestina, como se o autor intencionasse auxiliar o leitor que desconhece a região a se localizar. Todas essas considerações nos levam a concluir que o João estava a falar com um público gentio, que desconhecia o hebraico e locações na Palestina, por onde ocorreu a narrativa de Cristo.
Portanto, era de se esperar que a linguagem pudesse ser acessível a leitores gentios. Isso, certamente explicaria as similaridades com a literatura judaica, por sua origem pessoal, e helênica, por sua preocupação com seus leitores. O simples fato de João optar por relatar os fatos sob outra perspectiva, que não a dos sinóticos, já favorece a idéia de que João está a completar a tradição sinótica e a enriquecê-la.
Outro detalhe que merece ser mencionado aqui é que, em grande parte, a questão da origem do documento é realizada a partir da similaridade a que se associa o evangelho. Por isso, aqueles que defendem a similaridade do quarto evangelho com o texto Odes de Salomão, sugerem que a origem deva ser em Antioquia. Do mesmo modo, aqueles que defendem a relação com as obras essênias preferem optar por algum lugar na Palestina. Outros já sugeriram a Alexandria, pela suposta conexão entre o quarto evangelho e os escritos de Filo. Ou seja, se João se parece com alguma obra da região, ele deve ter escrito de lá.
Contudo isso não é uma argumentação válida, caso fosse, teríamos certeza quais são as obras de Orígenes que foram escritas em Alexandria e quais foram escritas em Antioquia, uma vez que escreveu de ambos os lugares. Outro detalhe normalmente ignorado é que as influências que um autor sofre não determinam sua região geográfica, mas o tipo de literatura ou ideologia a que o autor estava exposto. Por isso, não é impossível que João escrevesse um evangelho de Éfeso, embora deixasse claro suas raízes judaicas ao mesmo tempo que escrevia para gentios. Em outras palavras, a análise literária não tem o poder de definir a região que João estava quando escreveu.
Vale a pena ser dito que os montanistas da Frígia no segundo século, apelaram ao uso do evangelho de João por causa do modo como a doutrina era exposta. Essa proximidade geográfica, parece favorecer a idéia de que o evangelho tenha sido originalmente escrito naquela região. Favorece essa conclusão, o fato de que Atos narra entre os capítulos 18e 19 que ainda havia em Éfeso um grupo de discípulos de João Batista. Normalmente se defende que os acontecimentos narrados em Atos teriam acontecido entre 50 e 55 d.C. Portanto, é plausível que a similaridade com os escritos essênios tenham o propósito de alcançar pessoas ainda sob influência do doutrinamento de João Batista. Soma-se a isso, o fato de o quarto evangelho deixar tão evidente um papel secundário e pequeno para João Batista, e enfatizar o seu testemunho a respeito de Cristo. Portanto, embora não se possa afirmar conclusivamente, parece seguro assumir que Irineu está correto sobre a origem do Quarto Evangelho foi em Éfeso, e que João escreve primeiramente para gentios cristãos que precisavam ser fortalecidos em sua fé.
É importante lembrar o leitor que, é bem provável que o pano de fundo conceitual mais apropriado para o evangelho seja o próprio Antigo Testamento e o ambiente da religião judaica ortodoxa do primeiro século, assunto que trataremos quando tratarmos da Teologia do Autor.

[1] Irineu, Opt. Cit. , III, 1, n. 2
[2] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica. 4.14.3-8
[3] Rudolf Bultmann, Teologia do Novo Testamento. pp.438.
[4] Idem, Ibid.
[5] Idem, pp.442.
[6] Leonard Gopelt, Teologia do Novo Testamento. pp.513-4.
[7] Idem, pp. 514
[8] Werner Gerog Kümmel, Síntese Teológica do Novo Testamento. pp.318.

Fonte; teologando